A magia das letras e ou o aroma de pipoca
As letras resultaram inúteis e ou podem escrever novas histórias com aroma de pipoca doce. Será?
Chega um tempo em que não se lê mais nada. Em que as letras resultaram inúteis. Tempo de absoluta selvageria.
Felizmente, tem uma época que é sagrada para os porto-alegrenses. E que sobrepuja a inanição das gentes, trazendo esperança e reescrevendo as linhas.
Ano após ano, é a época na qual personagens de todas as estirpes passam a vagar pelas esquinas do Centro Histórico de Porto Alegre e a Praça da Alfândega põe-se a pulsar em uma cadência diferenciada, como se ao ritmo de uma máquina de escrever.
É a festa das letras, que há tempos invade o coração da nossa cidade em meados de outubro, novembro, fazendo com que memórias de todos os lados se entrelacem na construção de novas narrativas.
Poderia ser um tempo de perdição, mas é quando os aromas de doce se misturam aos cheiros de papel guardado e de poeira, unindo-se também ao calor que vem da chuva evaporada no asfalto e criando um ambiente quente e úmido tal e qual o clima da nossa Porto não muito alegre.
Nessa intensa atmosfera de fantasia é que o mundo para de girar e nos transporta ao centro daquela Praça na qual livros e mais livros e mais livros formam um universo encantado que dá corpo e alma à Feira do Livro de Porto Alegre.
Recém começou, mas já parece uma vida.
Na verdade começou há 70 anos.
É uma vida inteirinha.
Nesta edição, que vai até o dia 20 de novembro (sempre das 10h às 20h), daremos voz aos agentes culturais que buscam escrever linhas menos tortuosas do que as do início do ano, quando o RS - e o setor livreiro - afundou com as enchentes, em grande perda.
Em mais de mil atividades, escritores e editores celebram o renascimento das letras, que não podemos nunca deixar que tenham o Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Eu tenho absoluto pavor do centro de Porto Alegre, mas na Feira meu coração fica quentinho, cheio de lembranças do aroma de pipoca e dos livros do Menino Maluquinho que o pai comprava pra mim.
Quando era criança, sempre ansiava pela Feira para comprar as novas publicações do Ziraldo e também os saldos de uma ou outra banca.
Não tinha Google nem newsletters na época. Não tínhamos visto posts de influencers sobre o que era trend. Sou do tempo em que nem todas as estórias faziam história, então nos restava esperar a Feira e ir até lá para atualizar nossa Wikipedia pessoal.
E a minha era composta, nos primeiros anos de leitura, pela obra de Ziraldo, dentre outras, claro - Monteiro Lobato e Ruth Rocha, por exemplo. E as loucuras do Maluquinho, "o menino que tinha o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés", faziam parte da minha realidade e muito me ensinaram sobre a vida e o mundo.
O Menino Maluquinho foi mais do que um personagem do qual eu gostava. Numa época de barbarismos que foi a década de 80, ajudou a desenvolver minha imaginação fértil e lúdica, minha criatividade e gosto pelas Letras. E foi sinônimo de educação para toda uma geração que, mesmo que não admita, prefere tocar em folhas ao invés de gastar os olhos em livros digitais.
Pois que para todas as gerações a Feira seja um deleite.
E que venham linhas menos tortuosas para quem faz literatura nesta edição de 2024.
Que seja repleta de poesia e lindas histórias e sonhos realizados - sob o olhar atento do patrono Sérgio Faraco.
Em tempo 1: o início do texto eu escrevi parafraseando Carlos Drummond de Andrade, que amo, cujo texto reproduzo abaixo porque aqui não tem limite de caracteres:
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Esse é o poema Os Ombros Suportam o Mundo, publicado em 1940 no livro Sentimento do Mundo. Lindo, né?
Em tempo 2: Imagens da Feira do Livro, do Canva (montagem aleatória de imagens encontradas pela busca “palavras” e “livros”) e da Secom.